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51% da população brasileira acreditam em bruxas; percentual acima da média global

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O estudo de um economista americano que compilou dados colhidos em 95 países do mundo indica que cerca de 40% da população global acredita em bruxaria. A taxa variou entre 9% (Suécia) e 90% (Tunísia), e o Brasil ficou acima da média acima da média mundial, com 51%, na frente de vários países da África subsaariana, onde religiões supostamente promovem mais a crença em maldições e magia negra.

Os dados foram divulgados nesta tarde pelo economista Boris Gershman, professor da American University, de Washington (EUA), que está interessado no tema para entender como a crença nesse tipo de força sobrenatural se relaciona com indicadores socioeconômicos.

De cara, o estudo identificou várias correlações. “Consistente com sua função hipotética de manter a ordem e a coesão na ausência de mecanismos de governança eficazes, as crenças de bruxaria são mais difundidas em países com instituições fracas e se correlacionam positivamente com a cultura conformista e o viés de grupo”, escreveu o pesquisador.

Em outras palavras, essas crenças se manifestam por vezes como uma reação emocional ao estresse submetido por problemas como crises econômicas e abandono institucional de alguns grupos sociais. Apesar de a aderência a essa superstição representar um alívio, porém, ela vem com um custo social, diz o trabalho.

Mundo assombrado

 

Os dados compilados pelo pesquisador foram coletados entre 2007 e 2017 pela Pew Research e outros instituos de pesquisa de opinião. Só agora, porém, foram compilados em um único conjunto de dados relativamente abrangente.

Segundo Gershman, como a religião não foi um tema central das pesquisas originais, é um pouco difícil ainda inferir a crença em bruxaria de populações só com base na religião.

— A grande maioria dos entrevistados nos países da minha amostra se identificam como cristãos ou muçulmanos. Apenas uma pequena fração se identificou como pertencente a uma religião “tradicional” diferente. Além disso, 95% de todos que afirmaram acreditar em bruxaria se consideram cristãos ou muçulmano — explicou o pesquisador, falando ao GLOBO.

Gershman explica que, como há muito sincretismo entre denominações cristãs e religiões de matriz africana no Brasil e na América Latina, é difícil atribuir crenças determinadas a religiões específicas.

A crença em bruxaria é, de fato, maior entre seguidores das religiões africanas no Brasil, mas atribuí-la apenas a esse grupo é um erro, porque ignora o contexto histórico.

— Não custa lembrar que na mesma época em que essas crenças em bruxaria estavam sendo transplantadas da África para o Brasil como resultado do tráfico de escravos, vários julgamentos de supostas bruxas estavam sendo conduzidos no coração da Europa cristã — diz o pesquisador.

Como tudo começou:

Para a população camponesa europeia da Idade Média, as mulheres reconhecidas como ‘bruxas’ eram membros fundamentais da comunidade. Elas eram normalmente mais velhas, acumulavam muitos anos de experiência e dominavam os saberes necessários para lidar com a vida e a morte: a dose correta para curar uma doença, o procedimento preciso na hora do parto, as plantas capazes de promover abortos, as ervas que causavam alívio durante o falecimento. Como define o historiador francês Jules Michelet (1798-1874): “A ela se pede a vida, a morte, remédios, venenos”.

É justamente daí que vem a imagem da bruxa como uma idosa, tendo o caldeirão como companheiro inseparável (onde se misturavam os ingredientes dos seus preparados). Nas suas comunidades, elas não eram vistas como más ou perversas por natureza; eram chamadas de ‘mulheres sábias’ em várias línguas, e participavam ativamente da vida comum. Em alguns casos,

cobravam pequenos valores pelos seus feitiços; em outros, apenas os faziam enquanto membro da comunidade que cumpre o seu papel. Seja como for, entre as populações campesinas da Europa, elas eram as médicas, as conselheiras, as guardiãs da vida e da morte.

Você pode se perguntar: Se as bruxas eram mulheres reais e tinham trabalhos dignos, por que houve figuras como Circe, a feiticeira que transforma os homens em porcos na Odisseia, do poeta grego Homero (928 a.C – 898 a.C), e tantas outras mulheres más e assustadoras?

O estudioso de mitologia e religião norte-americano Joseph Campbell (1904-1987) explica que, desde as épocas mais remotas da história, a mulher é vista como força mágica e misteriosa da natureza, e esse poder feminino acabou despertando uma das maiores preocupações do ser masculino: como quebrá-lo, controlá-lo e usá-lo para seus próprios fins.

Conhecimento que empodera e incomoda

Durante dez séculos de hegemonia do Cristianismo no Ocidente, a Igreja tolerou práticas consideradas ‘pagãs’ em toda a Europa, de modo que as crenças tradicionais de diversos povos permaneceram vivas e, em muitos casos, sincretizadas ao Catolicismo. Porém, no final do século 14 e meados do século 15, houve severa investida contra tudo que contrariasse os dogmas cristãos – e as mulheres sábias se tornaram um alvo preferencial da ira dos então chamados inquisidores.

As tensões já existentes entre masculino e feminino desaguaram em uma das mais terríveis turbulências sociais na Europa medieval. A caça às bruxas, como ficou conhecida, foi amparada por uma série de justificativas teóricas inventadas por padres em toda a Europa. O mais famoso guia para esse intento foi O martelo das feiticeiras, endossado pelo papa, publicado em 1486. Nele, as ‘mulheres sábias’ deixavam de ser membros fundamentais da sociedade para serem entendidas como agentes de Satã na Terra. O livro defendia que a feitiçaria era resultado direto de um pacto com o demônio, era típica da mulher, de qualquer idade, pois ela seria ‘sexualmente insaciável’ e, por isso, mais frágil diante do diabo. Portanto, sua prática era maléfica por natureza.

Com esse movimento, a imagem das feiticeiras de autonomia e poder para influir na vida coletiva se transformou. O nascimento da Inquisição e o início da caça às bruxas, no século 14, impulsionaram uma nova narrativa sobre essas mulheres, muito diferente daquela que a comunidade havia estabelecido. A partir de então, a figura da ‘mulher sábia’ passou a ser substituída pela de uma agente das forças das profundezas que se reúne com suas semelhantes para praticar magia negra e adorar o diabo

Versões de bruxas na cultura

Se, depois do século 18, a Inquisição já havia acabado, a imagem da bruxa construída nesse período permaneceu. No entanto, como resposta a mudanças de contexto – religioso, político, tecnológico e social –, representações alternativas (embora igualmente inventadas) para as bruxas foram surgindo.

Conhecemos, por meio do cinema e da televisão, uma variedade enorme de bruxas de feições grotescas e caricatas, ou apenas com características distantes do padrão de beleza que se vê nas princesas, evocando um senso de ‘feiura’. Dentre essas características atribuídas à feiura, podemos citar a velhice e o nariz grande e enverrugado, em bruxas como a da história da Branca de Neve; a pele de cor não branca, como a da Bruxa Má do Oeste, de O mágico de Oz; o excesso de peso, que podemos ver na personagem Úrsula, da Disney, e na Bruxa Onilda, do desenho animado espanhol de mesmo nome.

Atendendo aos anseios de um público masculino que sensualiza as mulheres em qualquer oportunidade, também surgiram muitas representações de bruxas hipersexualizadas, como no clássico filme Elvira: a rainha das trevas, no qual a feiticeira induz o homem puro ao pecado da luxúria. Mas uma característica que parece ser uma constante entre boa parte das bruxas da cultura pop é a perversidade: são sempre mulheres pecadoras, com características indesejáveis.

Nos últimos anos, algumas histórias vêm transformando bruxas famosas em anti-heroínas, ou seja, personagens que praticam atos moralmente negativos, mas motivadas por boas intenções ou por mero acaso.

Mesmo assim, a imagem de bruxa perversa ainda é tão forte que, se uma criança vai a uma festa fantasiada de Glinda (a bruxa boa de O mágico de Oz), ela certamente será confundida com uma fada ou princesa.

O que podemos perceber com isso é que a imagem que temos das bruxas são construções que surgiram com o único intuito de manter uma estrutura de poder que subjuga o feminino e mantém a supremacia do masculino. São resquícios de uma criminalização institucionalizada da mulher livre, sábia e dona do próprio caminho.

Apesar da mudança na imagem das bruxas, suas versões coexistem, se relacionam e se retroalimentam. E, ao longo dos anos, as bruxas também mudaram. Essas mulheres que faziam o mundo acontecer desde a aurora da humanidade hoje estão espalhadas por todas as áreas do conhecimento da natureza. Se algo se manteve constante, foi a dificuldade do homem de dividir o protagonismo da história e as tentativas perversas de manutenção artificial de sua ‘superioridade moral, intelectual e biológica’.

 

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