Trump transforma banco dos réus em palanque eleitoral após acusação formal
Horas após sua histórica audiência de acusação formal em Nova York na terça-feira, o ex-presidente Donald Trump apareceu à noite perante apoiadores em sua residência em Mar-a-Lago, na Flórida, para fazer um discurso incomumente curto de 21 minutos, em que classificou o caso judicial apresentado contra ele no Tribunal Criminal de Manhattan como injusto e politicamente motivado. Segundo Trump, armaram um “falso caso” contra ele.
— Nunca imaginei que algo assim pudesse acontecer nos Estados Unidos — disse Trump diante de uma multidão de apoiadores, ao adentrar o salão ao som de “Proud to be an American” (“Orgulhoso de ser americano”, canção-tema de sua campanha eleitoral), enquanto os presentes gritavam “EUA! EUA!”. — O único crime que cometi foi defender destemidamente nossa nação daqueles que procuram destruí-la.
Com transmissão ao vivo das redes de TV a cabo, o pronunciamento foi visto pelos assessores do republicano, que foi o 45º presidente dos EUA (2017-2021), como um lucrativo anúncio de campanha, um estímulo para a arrecadação de fundos online que corre lentamente desde que ele anunciou, em 15 de novembro, que disputaria a nomeação republicana para as eleições de 2024.
A CNN até chegou a interromper a transmissão conforme ficou claro que se tratava de um palanque eleitoral. A NBC, outra grande emissora, sequer mostrou ao vivo a fala, assim como a rádio pública NPR. Àquela altura, contudo, Trump já dominava há horas o noticiário global.
Por isso, não foi apenas o discurso que a equipe de campanha viu como uma oportunidade de roubar oxigênio de qualquer um dos potenciais competidores do ex-presidente. A ampla cobertura de todo o processo do indiciamento, desde a denúncia na última quinta-feira, em todos os canais de TVs a cabo, não apenas a conservadora Fox — incluindo transmissões sem fim de seu avião e comitiva —, é motivo de comemoração.
O conselheiro de mídia social de Trump, Dan Scavino, mostrou como o caso histórico, que transformou Trump no primeiro ex-ocupante da Casa Branca acusado formalmente, foi visto como uma oportunidade de exposição ao postar inúmeros vídeos da viagem da Flórida, na segunda-feira, para Nova York, onde teve a audiência de acusação na terça. Segundo o principal assessor de Trump, Jason Miller, a campanha arrecadou mais de US$ 8 milhões em doações online desde a denúncia de quinta-feira, embora os números de fato só ficarão disponíveis em algumas semanas.
Assim, o imbróglio dá a Trump uma oportunidade de replicar suas habituais táticas: com os holofotes sobre si, volta a pautar o ciclo de notícias e mobilizar seus apoiadores com sua retórica belicosa.
Antes do pronunciamento na terça à noite, Trump se declarou inocente das 34 acusações de que teria falsificado documentos empresariais dentro de um esquema para esconder informações que poderiam prejudicá-lo na disputa que o levou à vitória nas eleições de 2016 — escândalo que, dois ciclos eleitorais depois, o deixa em vantagem na largada da corrida para ser o candidato do seu partido no pleito do ano que vem.
A denúncia é centrada no suposto pagamento de suborno para que a atriz pornô Stormy Daniels não divulgasse detalhes de um caso extraconjugal que tiveram em 2006 — Trump nega tanto o caso quanto o suborno.
De terno azul marinho e gravata vermelha, Trump foi posto sob custódia no início da tarde, logo após a comitiva de 11 carros encostar no Tribunal Criminal de Manhattan, cujos arredores estavam tomados por forças de segurança e jornalistas. Em um parque na região, uma barricada de metal dividia centenas de manifestantes contrários e favoráveis ao ex-presidente, que gritavam uns com os outros.
Sem algemas nem fotos
O status de ex-presidente lhe rendeu alguns benefícios: não foi algemado e foi poupado do mugshot, as fotografias tiradas de frente e de perfil de quem se torna réu. Também não precisou aguardar em uma cela, ficando em um espaço reservado. Cuidados demandados por seu advogado, mas também de uma Promotoria que coreografou os procedimentos para conter ao máximo as oportunidades de o republicano transformá-los em eventos de campanha.
Trump levou consigo uma equipe própria de filmagem e, segundo o New York Times, só não falou com a imprensa ainda no tribunal porque as câmeras estavam mais distantes do que o previsto. Na iminência da denúncia, houve um acirramento retórico, com xingamentos contra os envolvidos na investigação e falas racistas contra o promotor-geral Alvin Bragg, que é negro.
Após ser fichado e ter suas digitais colhidas eletronicamente para os registros criminais, o visivelmente irritado republicano foi levado para a sala onde ocorreu a audiência comandada pelo juiz Juan Merchan. Ao seu lado estavam o conselheiro jurídico Boris Epshteyn e os advogados Todd Blanche, Susan Necheles e Joseph Tacopina.
— Ele está frustrado. Ele está chateado. Mas eu vou dizer algo a vocês. Ele está motivado e isso não irá contê-lo — disse Blanche após a sessão.
Merchan chegou a pedir durante a audiência para que o réu evitasse declarações de incitação à violência, mas o apelo teve pouco impacto já que Trump voltou a repeti-las durante seu discurso na Flórida.
As 34 acusações dizem respeito à falsificação de documentos empresariais, crime com pena máxima de quatro anos — cada uma delas, pela lei nova-iorquina, representa uma má conduta diferente dentro do mesmo tipo de crime. Ou seja, Trump poderia passar até 136 anos atrás das grades se condenado.
É improvável, contudo, que Trump passe o resto da vida na prisão caso seja condenado. Como o ex-presidente não tem antecedentes e o julgamento deve coincidir com a corrida eleitoral do ano que vem, o mais provável é que seja poupado da temporada atrás das grades.
A falsificação de documentos é com frequência uma contravenção em Nova York, mas o argumento-chave da Promotoria é que os registros falsos foram usados para violar leis de campanha eleitoral, o que constituiria um crime. A junção de ambas, no entanto, é uma tese nova e frágil, o que levou juristas a questionarem o custo-benefício de a Promotoria apresentar as acusações.
Em uma entrevista coletiva após a audiência, o promotor-geral Alvin Bragg defendeu-se dizendo que a falsificação de documentos é “o pão e a manteiga” dos crimes de colarinho branco do seu escritório. Ele assumiu as investigações no ano passado, após os trabalhos serem escanteados por seu antecessor, Cyrus Vance.
— Hoje nós defendemos nossa responsabilidade solene de garantir que todos são iguais perante a lei — disse Bragg. — Nenhuma quantia de dinheiro, nenhuma quantidade de poder abala esse sólido princípio americano.
Esquema delituoso
Os quase cinco anos de investigações da Promotoria de Manhattan determinaram que Trump “orquestrou um esquema” em conjunto com aliados para “influenciar a eleição presidencial de 2016 ao identificar e comprar informações negativas sobre si para suprimir sua publicação e beneficiar” suas perspectivas eleitorais.
As 34 acusações dizem respeito ao pagamento de US$ 130 mil (R$ 826 mil, em valores corrigidos) na reta final da campanha de 2016 para que Daniels não contasse à imprensa sobre o caso que haviam tido uma década antes, quando Trump estava recém-casado com sua terceira e atual mulher, Melania. A transação pela compra do silêncio de Daniels teria sido intermediada pelo então advogado de Trump, Michael Cohen.
Já na Casa Branca, Trump teria reembolsado o funcionário em 11 cheques, relatando os pagamentos como gastos ficcionais com despesas legais. Em 2018, Cohen declarou-se culpado de crimes federais envolvendo o pagamento para Daniels e foi condenado a três anos de prisão. Ele afirma ter agido sob ordens diretas de Trump.
Para descrever o que diz ser o esquema maior para influenciar o pleito de 2016, a Promotoria descreveu evidências de pagamentos feitos pela American Media Inc, empresa à época dona do tabloide National Enquirer, à modelo da Playboy Karen McDougal — a coelhinha do ano de 1998 —, que havia procurado a publicação para contar sobre seu suposto caso com o ex-presidente. Notoriamente próxima de Trump, a publicação comprou os direitos de sua história por US$ 150 mil, mas nunca a publicou.
Houve ainda um suposto pagamento de US$ 30 mil que o tabloide fez a um antigo porteiro da Trump Tower, o edifício do antigo mandatário em Manhattan, que afirmava saber de um filho que Trump teria tido fora do casamento. O jornal depois determinou que a história não fosse divulgada.
No discurso de 21 minutos que fez em Mar-a-Lago, Trump voltou a se referir às acusações como “perseguição política” e insistiu que “não existe um caso” contra ele.
Trump não precisou pagar fiança, já que pela lei nova-iorquina réus de crimes não violentos aguardam em liberdade. Sua próxima audiência está marcada para 4 de dezembro, e o julgamento deve coincidir com a reta final da eleição do ano que vem.
Como réu ou condenado, não há nada na Constituição americana que impeça Trump de assumir a Presidência em 20 de janeiro de 2025, caso vença as eleições. As acusações, porém, podem ser as primeiras de uma série, frente à miríade de imbróglios legais que envolvem o ex-presidente.
Há investigações criminais sobre o papel de Trump no ataque de seus apoiadores ao Capitólio em 6 de janeiro de 2021 para impedir a sessão que confirmaria a vitória do democrata Joe Biden. Uma pesquisa da Fox News divulgada na quinta-feira indicou que ele tem apoio de 54% dos eleitores republicanos para as primárias.
Fonte: Extra