Como Iemanjá nasceu preta na África mas virou branca no Brasil?

Pelo segundo ano consecutivo, a tradicional Festa de Iemanjá, que ocorreria nesta quarta-feira (2/02) no boêmio bairro do Rio Vermelho, em Salvador (BA), foi cancelada pelo poder público municipal em razão da escalada dos casos da variante ômicron do coronavírus na Bahia. Juntamente com a celebração a Santa Bárbara, a Nossa Senhora da Conceição da Praia, Santa Luzia e Senhor do Bonfim, a homenagem a Iemanjá compõe o calendário de festas populares da Bahia. São ao todo 13 festas entre dezembro e fevereiro, algumas já extintas.

Na festa do Rio Vermelho, as ruas do bairro são tomadas por baianos e turistas, as calçadas são ocupadas por barracas de comidas e bebidas e os prédios do bairro abrigam comemorações privadas.

Como não poderia deixar de ser, há em todas elas um forte componente das religiões afro-brasileiras. A devoção aos santos católicos é acompanhada pela participação de membros do candomblé e da umbanda. Não se trata, porém, de sincretismo puro e simples, termo que durante muito tempo se fixou para expressar a suposta fusão entre santos católicos e divindades africanas.

A venerável líder do Ilê Axé Opô Afonjá, Mãe Stella de Oxóssi, falecida em 2018, defendia com firmeza a separação entre santos católicos e os orixás do candomblé.

Atualmente, os integrantes da venerável Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos falam com tranquilidade sobre o duplo pertencimento religioso, ao invés de sincretismo. Os adeptos das religiões de matriz africana e cristã sabem muito bem diferenciar Iansã e Santa Bárbara, Oxum e Nossa Senhora da Conceição, Oxalá e o Senhor do Bonfim.

A própria Iemanjá passou por esse processo. Já foi associada, na Bahia, a Nossa Senhora do Rosário – devoção católica muito popular entre a população negra, tanto no período da escravidão quanto no pós-abolição — e a Nossa Senhora da Conceição da Praia, juntamente com Oxum. Em outras partes do Brasil, Iemanjá é associada a Nossa Senhora da Glória e a Nossa Senhora dos Navegantes.

Bastante popular em Salvador, o culto a Iemanjá também se espalhou para outras cidades da Bahia, celebrados no dia 2 de fevereiro e nos dias subsequentes. Em Cachoeira, cidade do Recôncavo baiano, a festa ocorre no primeiro domingo após a festa em Salvador. A devoção também se espalhou por outras cidades do Brasil. No Pará, a festa é celebrada no dia 8 de dezembro; no Rio de Janeiro, 31 de janeiro. No Amazonas, a celebração também é no 2 de fevereiro nos terreiros oriundos de matrizes baianas.

O caso da Festa de Iemanjá é bastante particular. A Festa do Rio Vermelho era originalmente uma homenagem para Nossa Senhora de Santana, mas a partir dos anos 1960 transformou-se em festividade para a mãe d’água. Ela é a única entre as comemorações mencionadas dedicada exclusivamente a um orixá, como são conhecidas as divindades africanas de origem iorubá, na atual Nigéria. O culto a essas deidades atravessou o Oceano Atlântico junto com os milhares de africanos escravizados de origem nagô q nagô que trouxeram sua gramática religiosa a bordo dos navios negreiros.

No caso específico de Iemanjá — ou Yemojá, como é chamada na África — a devoção se espalhou por outras áreas da África Ocidental, principalmente no atual Benim. Na época do tráfico negreiro, essa região era conhecida como Costa da Mina, o principal local do comércio de escravizados para a Bahia, daí o culto ser tão popular em Salvador

O culto a Iemanjá, na África, ficava no Rio Ogun, no território dos egbas, um grupo que teve numerosos membros deportados para a Bahia, inclusive a primeira mãe de santo do famoso terreiro do Gantois, Maria Júlia da Conceição. Por sinal, o nome iorubá do terreiro, Ilê Iyá Omi Axé Iyamassé, faz referência a uma das qualidades, ou características, de Iemanjá. No final do século 19, os presentes a Iemanjá eram depositados no Dique do Tororó, uma lagoa de água doce no centro da cidade. Ao longo do século 20, Iemanjá se metamorfoseou em uma entidade da água salgada — talvez por ter protegido seus devotos durante a travessia atlântica — tanto no Brasil quanto em Cuba que, assim como o Brasil, recebeu muitos escravizados de origem iorubá.

 Popularidade e embranquecimento de Iemanjá

A celebração começa na noite anterior em 1º de fevereiro, tendo seu ponto alto com a entrega dos presentes na tarde do dia seguinte. Em anos pré-covid, enormes filas se formavam em frente à colônia dos pescadores do Rio Vermelho. Eles recebem os presentes, coisas como rosas brancas, espelhos, perfumes e outros itens, que serão levados de barco e depositados em alto mar em homenagem à rainha do mar. Nos últimos anos, houve um trabalho de conscientização para evitar o depósito de objetos não-degradáveis. Membros do candomblé e da umbanda têm participado das campanhas contra o depósito desses objetos na praia. Mas que este ano, assim como no ano passado, não poderão depositar suas oferendas, pois o acesso à areia será restrito para evitar aglomerações.

No dia da festa, milhares de pessoas caminham pelas ruas do Rio Vermelho com camisas com estampas de sereia, uma das representações mais conhecidas de Iemanjá. Não é difícil encontrar pessoas que se auto-intitulam filhos e filhas de Iemanjá, mesmo sem filiação ao Candomblé ou à Umbanda. Já no final do século 20, sereias já constavam entre as imagens da divindade no terreiro do Gantois.

Mais complicada é a representação de Iemanjá como uma mulher branca, de cabelos pretos. Como uma divindade africana, esperava-se que Iemanjá fosse representada como uma mulher negra. Há nesse aspecto um elemento do racismo que alcança o universo religioso, ao retirar de Iemanjá a sua filiação africana – e sua cor. O embranquecimento de Iemanjá ao longo dos anos pode ter contribuído, em grande medida, para a sua popularidade entre diferentes grupos sociais. É uma das festas de maior apelo do calendário de festas populares, juntamente com a Lavagem do Bonfim, além de ter criado raízes na cultura pop soteropolitana, como demonstrou Cleidiana Ramos num estudo sobre as “festas de verão” em Salvador.

Algumas iniciativas têm sido tomadas para restabelecer a “negritude” de Iemanjá. No próprio Rio Vermelho, há uma escultura de uma sereia negra, representando a famosa divindade. Em Vitória, ES, uma estátua de 3,60 m de altura lá existe desde 1988, ano do centenário da abolição. Produzida por um artista grego, a estátua era originalmente branca – uma réplica das representações comuns de Iemanjá e inspirada em Nossa Senhora dos Navegantes, protetora dos homens do mar – mas teve sua cor alterada em 2017 após pressão das religiões de matriz africana e do Conselho Municipal do Negro.

Os debates por uma representação mais fidedigna de Iemanjá extrapolam os limites de categorias simplificadoras como “pautas identitárias”, como tem-se tentado enquadrar os legítimos questionamentos sobre o racismo no Brasil. Estão incluídos no lastro da discussão sobre a garantia de cidadania num Estado laico, mediante o respeito à diversidade religiosa e às religiões de matriz africana. Afinal, Iemanjá perderia a sua estima e apelo popular se fosse representada como uma mulher negra?

*Carlos Silva Jr. é integrante da Rede de Historiadoras Negras e Historiadores Negros.

Fonte: UOL Notícias

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