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Ex-cobrador de ônibus se forma em medicina na UnB, aos 49 anos

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Natural de Taguatinga, Gilberto Arruda Rodrigues, de 49 anos, cresceu em Ceilândia em uma família com seis irmãos. Desde cedo, foi incentivado em casa a estudar, mas passou por dificuldades financeiras e perdeu os pais ainda jovem: a mãe, com nove anos, e o pai, com 18.  Ele conta que viu muitos amigos “indo para outros caminhos, se envolvendo com a violência da região”. Gilberto pensou, na época: “Eu não quero isso para mim. Quero outro estilo de vida”. Então, focou na educação e teve vários trabalhos para ajudar no sustento da família.

A ocupação que mais marcou sua trajetória foi a de cobrador de ônibus, à qual se dedicou por seis anos, desde os 18, por incentivo do pai — que era motorista de transporte público. Gilberto trabalhava para pagar o curso de educação física que queria fazer na época, mas enxergava o ingresso na faculdade como uma realidade distante. “Eu passava na UnB e pensava que isso aqui não era para mim, pelo menos por enquanto, e para conseguir pagar uma faculdade particular, teria que arrumar um emprego melhor”, diz. E assim buscou.

No mesmo ramo, tentou ascender ao cargo de motorista, mas sofreu um acidente de trabalho que interrompeu seus planos: durante o treinamento para o novo emprego, em 2000, foi atropelado por um colega, o que lhe custou parte do movimento das pernas. “Naquele momento, a esperança que eu tinha de trabalhar e fazer faculdade acabou”, lembra. Mas, no fim, sua determinação o fez superar esse e outros desafios.

Gilberto Arruda durante o curso técnico de eletromecânica no IFB (foto: Arquivo pessoal)

Gilberto está concluindo o curso de medicina na Universidade de Brasília (UnB) e, depois de seis anos de muita dedicação e perseverança, o estudante se forma na próxima sexta-feira (24/5), mostrando que nunca é tarde para alcançar um sonho, que nem sempre foi ser médico.

Vocação

Após uma longa recuperação do acidente, que o impossibilitou de andar por um ano, Gilberto deu a volta por cima. Se casou, teve três filhos e, em 2013, concluiu o curso técnico de eletromecânica no Instituto Federal de Brasília (IFB), área que sempre lhe chamou a atenção. Em seguida, ele fez a prova do Enem para engenharia eletrônica e passou na Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR). Ele aproveitou a oportunidade, mas sua intuição o fez desistir do curso logo no início e voltar para Brasília.

Gilberto seguiu nos estudos, porque ainda queria engenharia, mas começou a ter sinais de que deveria se tornar médico. “Eu recebi uma carta da Uniceplac para fazer medicina com 50% de desconto pelo Fies, sem ter mandado nada para a faculdade antes. Nos atendimentos para cuidar das minhas pernas, um enfermeiro e uma técnica de enfermagem também me disseram que eu deveria seguir carreira na área da saúde. Além disso, tive vários sonhos. Em um deles, meu médico disse que seria meu professor de medicina. Quando acordei, pensei: não tem jeito, é medicina mesmo”, descreve.

Persistência

O formando expõe que voltar para Brasília foi a melhor decisão, pois teve a oportunidade de estar perto dos filhos e apoiar os estudos da companheira. Durante esse período, quando conciliava a rotina da família com a preparação para passar em medicina, ele conta que percebia uma defasagem em seus conhecimentos: “Quando eu ia fazer as provas do vestibular, não entendia algumas coisas, porque não tive matérias como química, física e biologia no ensino médio”. Assim, Gilberto teve que buscar outros métodos de estudo, por meio de cursos on-line e estudando com a filha, que se preparava para entrar na escola militar.

Em 2017, ele e a então esposa se separaram, causando uma instabilidade na vida dele, mas houve uma surpresa: ele foi aprovado para medicina pelo Enem. “Havia feito o Enem naquele ano, mas não passei nas duas primeiras chamadas. Não ia olhar mais o resultado, porque, em medicina, não tem tantas chamadas. Resolvi olhar por incentivo da minha cunhada e, para minha surpresa, descobri que tinha passado na UnB. Fiquei muito contente, pois ali seria um novo recomeço”, diz.

Durante os estudos, Gilberto se mudou para o Plano Piloto, vendo a família com menos frequência, já que moravam em Ceilândia. Apesar da distância, seus filhos o motivaram a não desistir: “Quando dizia que estava muito difícil, meu filho, de 10 anos, me falava para não desistir do meu sonho, e uma de minhas filhas diz que quer ser médica, como eu”. Mais tarde, a família veio para o Plano também, facilitando os encontros.

No começo, ele relata que foi muito difícil, pois acordava cedo para pegar o ônibus e se organizar para as aulas, mas a falta de sono estava prejudicando o aprendizado: “Eu simplesmente não entendia o que estava acontecendo na aula. Eu não memorizava nada, porque não estava dormindo direito, então, ajustei o sono”. Ele pensou em desistir várias vezes, pela complexidade do curso, mas, a cada semestre que passava, ficava mais confiante em seguir na formação.

Apoio

Em certos momentos, Gilberto se sentiu invisível no ambiente acadêmico e sofreu preconceito por sua cor de pele e deficiência nas pernas, mas buscou forças junto aos professores e amigos, seus maiores incentivadores na universidade. Para ele, ficam os ensinamentos do pai de que não se deve fazer distinção entre as pessoas, já que, por mais que “elas tenham os seus valores, a gente não foi criado separando o branco do negro. Ele fazia amizade com todo mundo, então, eu peguei isso dele”.

No primeiro semestre do curso, como incentivo, um de seus professores prometeu lhe dar um livro que os alunos precisavam adquirir no quarto período do curso, para fazê-lo estudar até lá. Ele também relata que se presenteava ao final dos semestres com algo que queria, “como forma de reafirmar minhas conquistas”.

O apoio da universidade também foi essencial para a sua permanência, com auxílios em relação à alimentação, moradia e para compra de equipamentos, como computadores, para desenvolver as atividades do curso. Agora, ele vive na casa do estudante, moradia oferecida pela UnB a alunos em vulnerabilidade socioeconômica. “Esse apoio foi muito importante na minha caminhada e para minha permanência na universidade”, frisa Gilberto, referindo-se também à limitação física para se locomover.

-Gilberto Arruda, cobrador de ônibus que irá se formar em medicina na UnB.

Planos para o futuro

Gilberto pretende se especializar e passar em algum concurso, “desempenhando uma carreira profissional satisfatória, fazendo algo de bom pelos pacientes”. Ele deseja seguir na área de medicina legal ou de medicina familiar, vertentes que mais lhe chamaram a atenção durante a graduação. O estudante considera que “se eu não tivesse vivido todas essas dificuldades, talvez nem conseguiria descobrir o potencial que estava dentro de mim”. Ele também defende o olhar positivo sobre a vida: “Nunca ache que as coisas são impossíveis e tenha orgulho de si mesmo, porque, se você não tem, outras pessoas não vão ter”.

Como mensagem final, ele diz que, assim como ele, existem vários “Gilbertos” pelo mundo, mostrando que é possível superar dificuldades e servir de inspiração aos outros. Ele fez uma analogia com a crise climática no Rio Grande do Sul, que causou alagamentos em mais de 80% das cidades gaúchas e atingiu mais de dois milhões de pessoas. Para ele, a rede de apoio em todo o país, com doações e ajuda financeira para a recuperação da tragédia, demonstra que “o Brasil é muito além das diferenças de religião, de raça, idade, gênero, cultura e nível socioeconômico”, pois há uma coletividade que se mobiliza para ajudar. Assim foi com ele, que teve vários colegas na faculdade o incentivando a não desistir, independente de crenças pessoais. “O que as pessoas estão fazendo é um show de humanidade”, contou Gilberto, emocionado.

Fonte: Eu Estudante

*Estagiária sob a supervisão de Marina Rodrigues

 

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