Uma empregada doméstica ficou 72 anos trabalhando sem salário para uma família no Rio de Janeiro. Maria de Moura foi resgatada em março de 2022, aos 85 anos. Segundo a Justiça, as visitas dela à própria família eram controladas e o celular ficava com o patrão.
Nesta semana, uma juíza aceitou a denúncia do Ministério Público Federal contra mãe e filho que eram patrões da dona Maria de Moura. Yonne Mattos Maia e André Luiz Mattos Maia Neumann viraram réus na Justiça e são acusados de trabalho análogo à escravidão. André também vai responder por coação e ainda um crime específico, mais recente, que é o de se apropriar do cartão magnético especialmente de idosos ou de pessoas que não podem responder por si mesmas.
Segundo a promotora Juliane Mombelli, do Ministério Público do Trabalho, o caso representa um recorde negativo no Brasil: “é o mais longevo, em que a pessoa permaneceu mais tempo nessa situação análoga à escravidão, 72 anos. Infelizmente é uma vida toda nessa condição”, disse.
O Ministério Público do Trabalho (MPT) resgatou dona Maria de Moura, que atualmente tem 87 anos, a partir de uma denúncia anônima. A defesa alega que Maria era parte da família. (Veja mais abaixo)
O que chama muito atenção no documento do MPT são as fotos, uma ao lado da outra, dos locais onde as duas mulheres da casa dormiam.
Quando foi resgatada, dona Maria estava com a saúde debilitada. Natural de Vassouras, no interior do Rio de Janeiro, ela é de uma família muito pobre e aos 12 anos foi morar com a família dos patrões do pai, na fazenda onde ele trabalhava. O dono da fazenda era o pai de Yonne Matos Maia. Desde então, Maria viveu com eles.
A denúncia do Ministério Público Federal também diz que no dia da inspeção o cartão do INSS de dona Maria estava em posse de André, que admitiu ter a senha dela.
Ainda segundo a denúncia, na frente dos fiscais, André segurou o braço de Maria antes dela ser ouvida: “você não diga que trabalhou para a minha mãe, senão você vai…” e disse um palavrão.
Segundo o procurador Eduardo Benones, a condição em que dona Maria foi encontrada deram base à acusação. Trabalho análogo à escravidão é um crime federal.
“Ficou estabelecido de que havia jornada exaustiva, que os trabalhos eram também feitos de maneira pesada, que sobrecarregavam a dona Maria. Havia, na verdade, uma restrição à liberdade dela”, relatou Benondes.
A família de Maria diz que ela foi morar com a família de Yonne pela promessa de uma vida melhor, mas que, segundo a Justiça, não se concretizou. Também disseram que viam ela no máximo duas vezes por ano e por pouco tempo.
Dona Maria não tinha plano de saúde. Ela recebe uma aposentadoria como autônoma, graças ao apoio da irmã.
Atualmente, Maria Moura quase não sai de casa e está praticamente cega. Além da aposentadoria, recebe 1 salário mínimo da família Mattos Maia por decisão liminar da Justiça, enquanto corre o processo.
O que diz a defesa
A defesa dos acusados insiste que a dona Maria de Moura seja ouvida no julgamento. Até agora, o pedido não foi atendido porque ela apresenta sinais de demência e está com um processo de interdição em andamento na Justiça.
“Ela conviveu nessa família a vida toda. Ela frequentava samba, desfiles, viajava com a família. Estão tratando a Maria de Moura como se ela fosse um objeto. Estão subtraindo dela a humanidade dela. De ouvi-la. Você quer ficar com quem? “, disse Marcos Vecchi, advogado da família.
Escravidão
Para as autoridades, essa ideia de “quase da família” é um alerta, porque pode camuflar uma relação de trabalho degradada que fica ali escondida pela falsa ideia de relação de afeto.
“Ser quase da família na verdade significa ser quase humano. Pessoas que partem desse pressuposto, elas no seu íntimo estão entendendo que existe uma desigualdade racial inata. Olha só, ela tem um cantinho pra dormir. Ela come de graça. Olha só, ela usufrui da convivência familiar”, ressaltou a historiadora Ynaê Lopes do Santos, que estuda os resquícios da escravidão no Brasil.
Isso pode deixar a vítima confusa quanto a seus direitos e à situação na qual está inserida. O Ministério Público Federal levou esse conceito em consideração para elaborar a denúncia.
“Depois de muitos e muitos e muitos anos servindo as mesmas pessoas, a pessoa tem a sua consciência capturada. Ela não consegue se enxergar na condição de vítima, porque ela é tratada como se fosse supostamente uma pessoa da família”, ponderou Benones.
Por Fantástico