Em um impasse que já dura 14 anos, a discussão sobre a posse da Ilha do Urubu envolve diversos processos judiciais, denúncia por extorsão, cobranças de valores exorbitantes e até ameaça de invasão, tudo isso em meio a uma briga também familiar. O imbróglio envolve o terreno de 28 hectares no distrito de Trancoso, em Porto Seguro, uma das áreas mais nobres do extremo sul baiano.
Em 2006, pouco antes de deixar o cargo de governador do Estado, Paulo Souto fez a doação da área à família de Agnaldo Martins, que já solicitava o reconhecimento da titularidade da terra há 30 anos. O terreno fica ao lado da Fazenda Rio Verde, que pertencia a Aloísio Martins, irmão gêmeo de Agnaldo.
Em 2007, a Ilha do Urubu foi vendida a Crisnandes Alves, que incorporou a área à Bellavista Empreendimentos Imobiliários, empresa que no mesmo ano passou a ter como sócio majoritário o empresário belga Philippe Meeus. Foi então que teve início o imbróglio que dura até o momento.
Após firmada a compra com os herdeiros de Agnaldo, o empresário espanhol Gregório Preciado entrou em contato com a Bellavista para informar que o terreno da Ilha do Urubu fazia parte da Fazenda Rio Verde, que ele havia adquirido. Foi firmado então um acordo, para que Gregório cedesse inclusive à Bellavista os direitos sobre a área de Marinha de 8 hectares cadastrada na Superintendência do Patrimônio da União (SPU).
Foi então que os herdeiros de Aloísio, orientados pelo advogado César Oliveira, apresentaram uma carta de aforamento, datada de 1964, alegando serem os verdadeiros herdeiros da terra. Segundo o advogado Thiago Phileto, que representa Meeus, César teria encaminhado uma carta ao empresário Sérgio Pessoa, que possui relações com o belga, com uma proposta de acordo de R$ 3 milhões.
Na carta, enviada em janeiro de 2010, César aponta que uma das filhas de Aloísio era casada com o cacique Pataxó de Coroa Vermelha “e conta com aproximadamente 600 (seiscentos) índios para realizar a ocupação imediata da área”.
Como o empresário belga recusou a proposta, índios foram chamados ao local e fizeram uma ocupação simbólica. Porém, a invasão foi encerrada após os líderes perceberem que não se tratavam de terras com demarcação indígenas, como foram levados a acreditar.
“O meu acordo com ele [César] foi ir pra lá, que com 15 dias os problemas estavam sendo resolvidos. Eu reuni os índios daqui, a Aldeia Imbiriba, de Coroa Vermelha, e Aldeias Velhas, pra que a gente pudesse estar lá ajudando essa família. […] Quando eu descobri que realmente tinham coisas por trás, eu acabei recuando”, explicou o Cacique Arakati, da Aldeia Imbiriba.
As pressões continuaram nos anos seguintes. Em 2011, César Oliveira foi denunciado pelo Ministério Público do Estado por extorsão. Segundo o jornal O Sollo, o advogado teria cobrado dinheiro de Crisnandes Alves para não escrever matérias com acusações falsas em um jornal da região.
Recentemente, ele estaria usando a mesma estratégia contra Thiago Phileto, que assumiu a causa em 2016, ameaçando divulgar notícias falsas para tentar forçá-lo a deixar a causa e para enfraquecer a defesa de Meeus. Segundo Phileto, César Oliveira inclusive continua tentando obter dinheiro a partir das negociações com os herdeiros de Aloísio. “A gente avançou muito pra um acordo agora. Passamos quase 3 meses conversando sobre um acordo. Eles [os advogados] queriam ganhar 10 vezes mais do que os supostos herdeiros que eles representam. A família ganharia R$ 1,5 milhão e eles ganhariam R$ 15 milhões. Estão agindo como se donos da terra fossem”.
César inclusive chegou a ser condenado por calúnia contra o ex-governador Paulo Souto, por sugerir que o gestor tinha interesses particulares ao doar as terras da Ilha do Urubu.
INDÍCIOS DE
FALSIFICAÇÃO
A carta de aforamento no nome dos
herdeiros de Aloísio Martins indica um título de posse registrado no Cartório
de Registro de Imóveis de Porto Seguro. Porém, uma perícia feita no documento
apontou diversas incongruências.
A análise, feita no âmbito de um outro processo movido por Moacyr Andrade em 1994 contra os filhos de Aloísio, aponta rasuras e outras indicações de que o documento foi adulterado, como “paradas, indecisões, morosidade, borraduras, obliterações e remanescentes de traços subjacentes da escrita anterior”. Os peritos do Departamento de Polícia Técnica ainda buscaram conferir a assinatura do prefeito Armando Ribeiro Carneiro na carta de aforamento, encontrando “divergências marcantes”. Por isso, um decreto municipal de 27 de junho de 1994 anulou a carta de aforamento apresentada. César garante que Vadeilta é a proprietária do terreno e nega que haja rasuras no documento.
Um outro detalhe chama a atenção: a assinatura foi feita por um prefeito que não estava no cargo. De acordo com o Dicionário Biográfico-Histórico da Bahia, organizado pela Fundação Pedro Calmon, por causa do golpe militar de abril de 1964, Armando Ribeiro Carneiro foi cassado. Ele acabou substituído por Arnaldo Guerrieri, então presidente da Câmara, até 1966. Ainda assim, a carta de aforamento que teria sido assinada por Armando data de dezembro de 1964, quando ele já não estava à frente da gestão municipal.
APAIXONADO E PACIENTE
Philippe Meeus foi apresentado ao
terreno da Ilha do Urubu por Crisnandes, e vislumbrava no local a oportunidade
de desenvolver um empreendimento ao lado de um grupo francês. Somente dois anos
depois da compra ele ouviu falar sobre César Oliveira pela primeira vez. Ele
pediu que o empresário Sérgio Pessoa entrasse em contato para entender qual era
o impasse e foi então que recebeu a proposta de R$ 3 milhões por um acordo. “Eu
fiquei indignado. Recusei porque não aceito ser comprado”.
Meeus contou ao Bahia Notícias que foi então que ocorreu a invasão do terreno pelos índios, que durou cerca de um ano. “Estavam dizendo que era terras deles. Eu disse: ‘Eu não vou negociar, não vou interferir, vou esperar um desfecho’. E finalmente, depois de um ano os caciques saíram de lá, constrangidos porque tinham sido convencidos pelo César Oliveira a invadir a área”.
Ele ainda falou sobre a última proposta de acordo oferecida pelos advogados que representam os herdeiros de Aloísio: “Ele usou seu conhecimento pra agir de má-fé. Os herdeiros quase chegaram a um desfecho conosco várias vezes. E na última vez, na reta final, não deu certo. Normalmente um advogado pede 20% dos herdeiros, e aqui eles estão pedindo várias vezes mais do que o solicitado pelos herdeiros. Isso não significa pagamento de honorários, significa que é uma pessoa que quer se aproveitar de uma situação pra ganhar na loteria”.
O empresário belga se disse “paciente” para enfrentar a disputa, que já dura mais de dez anos, mas espera que o caso chegue logo a um desfecho. “Nós tentamos sempre ser muito transparentes. Eu fico muito triste que uma guerra contra um advogado atrapalhe o progresso da cidade. A cidade não precisa disso. Espero que a gente chegue a um acordo. Eu sou apaixonado por Trancoso, mas não quero me envolver nesse tipo de situação”.
Philippe Meeus chegou ao Brasil em 1974, e desde então desenvolveu negócios em cidades como Ribeirão Preto, Brasília e Rio de Janeiro. Ele também é um dos fundadores do Instituto Xingu, criado em 2011 para buscar proteger uma área de 1.300 hectares. Além disso, o empresário apoia um projeto social no distrito de Trancoso, uma escolinha de futebol voltada para crianças e adolescentes da região.
- Matéria transcrita do site Bahia Notícias