As tragédias com fenômenos naturais, sendo mais recorrente, as provocadas por volumes de chuvas, escancaram a desigualdade social e os privilégios de castas sociais no país que vivemos.
Ultimo país a abolir a escravidão, o Brasil ainda conserva um arremedo de modelo colonial da Casa Grande e Senzala. E é com esse modelo que a sociedade vive, sendo que, nos últimos anos, o disfarce foi destampado e desfraldado com as cores da bandeira nacional, com setores da sociedade assumindo, sem o menor pudor, constrangimento e vergonha, a superioridade de uma raça, os privilégios de classes, impondo mortes, sofrimentos e humilhações àqueles que imaginavam serem livres e cidadãos reconhecidos por uma constituinte.
O sistema de construção de Casas Populares encalhou, o déficit no setor bate a casa dos milhões, enquanto mais de dez milhões de brasileiros se penduram em morros, encostas, como se esperando a morte com a próxima chuva.
As ínfimas moradias que já foram construídas revelam o que a sociedade pensa sobre os pobres e os mais necessitados. Casas mal acabadas em verdadeiros pombais, distantes dos centros comerciais, atendidas por serviços de transportes precários, onde outros serviços públicos, como escolas, postos de saúde, água, esgoto-serviços básicos-, são concessões raras.
Uma cultura inexplicável, que chega ao seu ápice, quando vemos corretoras paulistas ofertarem a seus clientes, prédios com apartamentos segregados, sendo os andares mais baixos, para pessoas com menor poder aquisitivo, sem direito a salões, piscinas; com elevadores de serviço para uso; enquanto, nos andares mais elevados, são apartamentos confortáveis, com sacadas e, pasmem, quartos para empregadas. Um verdadeiro apartheid.
Recentemente um projeto de casa popular, construído em favela de Belo Horizonte, recebeu o Prêmio Internacional de Arquitetura, em concurso acirrado com países de diversos continentes. A Casa no Pomar do Cafezal, na favela do Aglomerado da Serra, em Belo Horizonte, faturou o prêmio de Casa do Ano 2023 no concurso internacional do ArchDaily, um dos principais portais de arquitetura do mundo, nesta quinta-feira (23/2). O “barraco” do artista belo-horizontino Kdu dos Anjos, concorreu na categoria com residências no México, índia, Vietnã e Alemanha, mas foi a favorita do público e levou a conquista no voto popular. Mas para a sociedade brasileira, trata-se de um ato isolado, que não se encaixa no nosso modelo, onde pobres e negros têm que morar distante, em cubículos, isolados, sem se misturarem com os arianos e abastados.
Esquecem que conviver com todas as realidades, múltiplas, cria as condições para as pessoas viverem melhor.
Um Ministro de Estado, em declaração recente, chegou a sugerir seu incômodo por empregadas estarem viajando para Miami e filhos de porteiros frequentarem faculdades. Um escárnio, mas revelador do pensamento das castas nacionais.
A canção Caravana, do brilhante Chico Buarque de Holanda, postada abaixo, ilustra as incômodas conclusões deste irracional escriba:
É um dia de real grandeza, tudo azul
Um mar turquesa à la Istambul enchendo os olhos
Um sol de torrar os miolos
Quando pinta em Copacabana
A caravana do Arará, do Caxangá, da Chatuba
A caravana do Irajá, o comboio da Penha
Não há barreira que retenha esses estranhos
Suburbanos tipo muçulmanos do Jacarezinho
A caminho do Jardim de Alá
É o bicho, é o buchicho, é a charanga
Diz que malocam seus facões e adagas
Em sungas estufadas e calções disformes
É, diz que eles têm picas enormes
E seus sacos são granadas
Lá das quebradas da Maré
Com negros torsos nus deixam em polvorosa
A gente ordeira e virtuosa que apela
Pra polícia despachar de volta
O populacho pra favela
Ou pra Benguela, ou pra Guiné
Sol
A culpa deve ser do sol que bate na moleira
O sol que estoura as veias
O suor que embaça os olhos e a razão
E essa zoeira dentro da prisão
Crioulos empilhados no porão
De caravelas no alto mar
Tem que bater, tem que matar, engrossa a gritaria
Filha do medo, a raiva é mãe da covardia
Ou doido sou eu que escuto vozes
Não há gente tão insana
Nem caravana do Arará
Não há, não há
Sol
A culpa deve ser do sol que bate na moleira
O sol que estoura as veias
O suor que embaça os olhos e a razão
E essa zoeira dentro da prisão
Crioulos empilhados no porão
De caravelas no alto mar
Tem que bater, tem que matar, engrossa a gritaria
Filha do medo, a raiva é mãe da covardia
Ou doido sou eu que escuto vozes
Não há gente tão insana
Nem caravana
Nem caravana
Nem caravana do Arará