Em uma passagem de seu mais novo livro, o recém-lançado “Um rio um pássaro” (Dantes), Ailton Krenak questiona a ideia de que “existimos para criar algo”. Na filosofia ocidental, escreve ele, é “honroso fazer barulho escandaloso na morte”, deixando monumentos para eternizar os que se foram. Apoiando-se no pensamento ameríndio, o ambientalista e filósofo oferece um contraponto: ser como um pássaro, que pousa em silêncio e volta aos céus sem deixar rastros.
Talvez contradizendo a própria imagem acima, Krenak foi eleito, na tarde desta quinta-feira (5/10), para a Academia Brasileira de Letras, uma instituição que abriga estátuas e “imortais”. Uma das funções da casa, inclusive, é a de preservar o legado de figuras notáveis da nossa cultura. Krenak está agora entre elas: ele ocupará a cadeira 5 da ABL, vaga desde a morte de José Murilo de Carvalho, em agosto. Mais do que isso: é o primeiro indígena a figurar no quadro de acadêmicos, mostrando que a academia vem se abrindo aos pedidos por diversidade nos últimos anos.
Favorito desde o início, Krenak recebeu 23 votos, superando a historiadora Mary Del Priore (12 votos) e outro representante indígena, o escritor Daniel Munduruku (3 votos). Ao contrário dos seus concorrentes, o novo imortal não fez campanha, ficando a maior parte do seu tempo na Reserva Indígena Krenak, no município de Resplendor, no estado de Minas Gerais.
Krenak é Doutor Honoris Causa pela Universidade Federal de Juiz de Fora e ocupa a cadeira 24 da Academia Mineira de Letras. Nascido no vale do rio Doce, uma região afetada pela atividade de extração mineira, mudou-se para o Paraná aos 17 anos, onde se alfabetizou. Após participar da da fundação da União Nacional dos Indígenas (UNI), o primeiro movimento indígena de expressão nacional, ele comoveu o país com um discurso na Assembleia Nacional Constituinte, em 1987, em que pintou o rosto com a tinta preta de jenipapo em protesto ao retrocesso dos direitos indígenas. Seu apelo na época foi essencial para a aprovação da emenda constitucional que trata dos direitos dos povos originários.
O sucesso de seus livros mais recentes, como “A vida não é útil” e “Ideias para adiar o fim do mundo”, ambos publicados pela Companhia das Letras, difundiu o pensamento ameríndio para o grande público, propondo novos modos de vida e maneiras de se relacionar com o meio ambiente. Krenak critica o que ele chama de “humanidade zumbi”, uma ideia de progresso que deslocou os homens do corpo da terra e nos levou o consumo desenfreado e à destruição da natureza.
Aílton Krenak
— Quando eu falava há uns 10 anos, com exceção dos antropólogos, ninguém entendia o que eu estava falando — diz Krenak. — Achavam que eu via filme de ficção-científica demais.
A urgência climática mudou este cenário, dando mais atenção a vozes como a do líder indígena. Krenak, porém, evita personalizações em suas entrevistas e aparições públicas. Seu desejo, diz, não é promover suas ideias, mas um “pensamento coletivo”. Não tem sido diferente em meio a chuva de homenagens aos 70 anos do pensador indígena, completados no último 29 de setembro.
— Eu acho ótimo que as pessoas me celebrem, mas no âmbito doméstico — diz. — Os filhos, os netos, entendeu? Essa celebração nas mídias me parece mais um entretenimento do que um afeto verdadeiro. Somos uma comunidade de agregados celebrativos, celebramos tudo, até aniversário do país. A gente trata mal os que estão presentes e celebra os que se foram.
Krenak vê perigo no culto à personalidade, um vício que acaba criando “monstros e fantasmas dos quais não conseguimos mais nos livrar”. Muitos admiradores das ideias de Mahatma Gandhi ou Nelson Mandela, pontua ele, “não aguentariam uma semana com nenhum dos dois”. E aqueles que admiram as ideias de Krenak, quanto tempo aguentariam?
“Um rio um pássaro” traz reflexões de Krenak anotadas por Hiromi Nagakura, um fotógrafo japonês que o acompanhou por terras indígenas nos anos 1990. O ambientalista fala sobre suas origens e sua jornada no tempo e no mundo durante conversas em viagens de canoas, finais de tarde nas redes e caminhadas na floresta. O texto da edição brasileira foi extraído de uma obra lançada no Japão em 1998, com fotos e um diário de viagem de Nagakura.
— Uma semana eu acho que daria – responde Krenak. — Eu conseguiria despistar alguns defeitos, que depois iriam aparecer com marcas muito fortes. E aí algumas pessoas iriam preferir me visitar de vez em quando. Ou só me ler.
Na visão de Krenak, a ânsia em dominar o outro colocou o homem “fora do universo”. A perda de um contato sensível com o “ritmo cósmico” também é a perda da nossa memória ancestral, da memória contida nas árvores e nos rios. Ele empresta uma expressão do escritor piauiense Nêgo Bispo para definir a armadilha que o homem se meteu: cosmofobia.
— As pessoas têm medo do cosmos, evitam uma cosmovisão. Aí o ser humano apaga tudo que não é ele — diz Krenak. — Somos como um boomerang cego que se manda para longe. Quando ele volta, continua oco.
O “sonho” é outro tópico-chave do livro. Não o sonho trabalhado pelos “queridos psicanalistas”, como Krenak explica. Mas o sonho como linguagem e treinamento espiritual — uma arte dominada por poucos.
Foram as mensagens do sonho de um ancião sonhador do povo Xavante, nos anos 1970, que estimulou Krenak a se reconectar com sua herança cultural e iniciar suas ações pela sobrevivência da floresta. Também inspirou a criação, em 1989, do Centro de Pesquisa Indígenas, que mudou as atividades de Krenak. Contudo, os sonhos atuais do líder indígena podem levá-lo a novos caminhos.
— Os sonhos estão me levando para um lugar cada vez mais longe dessa terra — revela Krenak. — Sem me dar nenhuma tarefa ordinária, tipo organizar uma associação ou um movimento, coisas que me envolveram por 50 anos da minha vida. Eu também não quero ficar apresentando folha de serviço. Aliás serviço. é a coisa que menos me interessa.
Krenak conclui:
— Somos efêmeros. Pisar suavemente na terra deveria ser uma guia geral.
Fonte: O Globo