Comemorado em 20 de novembro, o Dia da Consciência Negra é, antes de tudo, um lembrete incômodo: o Brasil, que gosta de se autodefinir como uma nação cordial e miscigenada, ainda convive com um racismo silencioso, persistente e profundamente entranhado em suas estruturas sociais. A data, criada para homenagear Zumbi dos Palmares e a resistência negra, tornou-se também um espelho que expõe desigualdades que muitos insistem em ignorar.
Um país construído sobre apagamentos
A escolha do 20 de novembro não é aleatória: ela rompe com o discurso oficial do 13 de maio, símbolo de uma abolição incompleta, tardia e sem reparação. Ao contrário da narrativa que exalta a “generosidade” da princesa Isabel, o Movimento Negro passou a denunciar, desde os anos 1970, que a abolição deixou milhões de pessoas libertas sem terra, sem direitos, sem oportunidades — e sem qualquer política de integração social.
Essa herança histórica não ficou no passado. Ela moldou a formação de um país que, até hoje, nega sua dívida social com a população negra enquanto reproduz práticas de exclusão.
Racismo camuflado: o mito da democracia racial como ferramenta de silenciamento
O discurso de que “somos todos iguais” serviu, durante décadas, para despolitizar a questão racial no Brasil. A ideia de uma democracia racial nunca resistiu aos dados: a população negra é maioria entre os pobres, os desempregados, as vítimas de violência letal e a parcela da sociedade com menos acesso à educação e saúde de qualidade.
Mas o racismo brasileiro opera de forma sofisticada: raramente explícito, quase sempre naturalizado. Manifesta-se nos olhares, nas desconfianças, na seleção de candidatos, na ausência de negros nos espaços de poder, na culpabilização das vítimas e na romantização da miséria.
É um racismo que se veste de cordialidade, que se esconde em piadas, que se justifica como “mera coincidência histórica”, mas que mantém sua função original: preservar privilégios.
Avanços políticos, resistências sociais
O reconhecimento do Dia da Consciência Negra como feriado nacional representou um avanço simbólico e institucional importante. Entretanto, cada conquista nessa área carrega forte resistência.
A própria implementação de políticas como as cotas raciais foi — e ainda é — alvo de discursos negacionistas que negam a existência do racismo, atacam o movimento negro e tentam reverter avanços construídos a duras penas.
Enquanto isso, comunidades quilombolas seguem lutando pela regularização fundiária, corpos negros seguem sendo alvos preferenciais do aparato policial, e jovens negros continuam morrendo antes de alcançar a idade adulta. Não se trata de acaso: é o efeito de um projeto histórico que naturalizou a desigualdade.
A cultura como resistência, não como ornamento
O 20 de novembro lembra que a cultura afro-brasileira não deve ser celebrada apenas como elemento folclórico. O samba, a capoeira, o candomblé, as expressões artísticas e religiosas negras emergiram em ambientes de repressão e vigilância — são manifestações de resistência, não adereços culturais.
Ao reduzir essas expressões ao entretenimento, a sociedade apaga o custo histórico da sobrevivência cultural negra e domestica sua dimensão política.
Consciência Negra é desconforto — e precisa continuar sendo
O Dia da Consciência Negra não é apenas um convite à reflexão: é um chamado ao enfrentamento. Enfrentar o racismo exige mais do que postagens nas redes ou discursos protocolares; exige rever privilégios, questionar estruturas, compreender que a desigualdade racial não é acidente, mas construção social.
Enquanto o Brasil insistir em negar esse debate, o 20 de novembro continuará sendo necessário — e continuará sendo um lembrete incômodo de que a tão proclamada igualdade brasileira existe apenas no discurso, não na prática.
O desafio, portanto, não é apenas lembrar Zumbi e Dandara, mas honrar o sentido político de suas lutas: romper com o silêncio, desnaturalizar o racismo e construir, enfim, uma sociedade que não precise camuflar suas feridas para parecer justa.